Não gosto e não costumo trazer futebol para aqui. Mas este texto que me mostraram, tem tanto de mim nele que, apesar de parecer, não é só futebol...
Há quem julgue que me abstenho. Acontece que vivemos numa era em que as
pessoas – todas as pessoas – descobriram a maravilha que é ter uma
opinião. Mais: as pessoas foram autorizadas a partilhá-las, diria mesmo
incentivadas a fazê-lo, escrevendo em espaços virtuais públicos. E as
pessoas levam esse pequeno novo poder muito a sério. As pessoas até
chegam ao ponto de, mesmo não tendo uma opinião, emitir uma – uma
qualquer, com ou sem fundamento, reproduzindo apenas o que se ouviu
dizer sem se pensar no assunto, ou renegando qualquer coisa porque,
assim à primeira, aquilo parece mal. Ora, eu não gosto de meter palavras
no difusor se não for para comunicar uma de duas coisas: ou uma
insignificância entretida e sem qualquer ambição – o que faço a maior
parte das vezes – ou uma ideia com pés e cabeça que pretenda – e de
facto mereça – ter relevância. Para bradar só porque é moda, não contem
comigo. Portanto, o que eu faço não é abster-me; é mais abstrair-me.
Esta introdução serve para assinalar duas características do texto que
pretendo escrever: tenho andado abstraído e, por isso, não vou falar de
coisas sérias da actualidade. Não tenho pensado no presidente Vieira,
nos seus detractores, nas contratações falhadas nem no Ola John. Tirando
o desejo de ver o Luuk de Jong com a Digníssima vestida, pouco mais do
Benfica me tem ocupado os pensamentos que não sejam as recordações.
A verdade é que o bom povo Benfiquista anda agitado por uma razão
simples: temos saudades do Benfica, todos nós. E, como bons portugueses,
há um espírito sebastianista nestas saudades. Que digo eu? O síndroma é
mais antigo que a Portugalidade. Todo o mundo ocidental espera pelo seu
messias (os que já estão servidos, já não esperam, mas em compensação
são-lhe profundamente devotos). Em cada craque dos PALOP há um potencial
Eusébio, em cada Luís Filipe Vieira existe um futuro Borges Coutinho,
em cada Carlos Martins pode vir a nascer um Aimar. É assim que somos, os
Benfiquistas. Em cada pré-época somos os certamente campeões da época
que aí vem. Como antigamente.
Os tempos mudaram, os anos passaram e continuam a passar e o
Benfica, o velho Benfica, não aparece. Há esta versão modernizadazinha e
sofisticadazinha, maquilhada e propagandeada, mas o Benfica de que a
gente gosta e de quem sentimos saudades bem poderia chamar-se Sport
Lisboa e Godot.
Nos dias de sol sinto mais saudades do Benfica. O sol é o elemento
do velho Estádio da Luz. Tudo nele era soalheiro, plácido,
resplandecente. As pessoas tinham de usar boné. Com o desaparecimento do
velho Estádio, perdeu-se um lugar fundamental da minha memória de
infância, do princípio de mim perante o futebol. É como perder a casa de
família onde crescemos – e já não é a primeira vez que exponho o
assunto nestes termos.
Há uns tempos, passava em Mafra pelo sítio onde foi e, para mim,
costumava ser porque sempre tinha sido, a minha escola primária. Ali,
onde aprendi a ler e a dar pontapés na bola e a escrever cartas de amor
“Vanda gostas de mim? Sim? Não?” exibem-se orgulhosamente três moradias
quase tão sofisticadas quanto a nova Luz – uma delas até tem piscina. A
visão chocou-me. Duplamente. Primeiro porque a minha escola já não
estava lá. Segundo, porque eu já sabia que a minha escola não estava lá e
que lá haviam construído aquelas três casas mas, ainda assim, eu estava
à espera que tudo isso não tivesse nunca passado de um mal-entendido,
um equívoco. E, então, quando olhei esperei sinceramente ver a minha
velha escola e não ver casa alguma, como resultado de uma correcção
cósmica de um erro crasso, de um atentado às minhas recordações.
Sucede o mesmo quando passo na Segunda Circular, por exemplo, e olho
para o Estádio. Espero sempre ver três anéis e quatro torres de luzes a
dizer Tudor. Mas o panorama teima em ser sempre o mesmo, numa visão
tradicionalmente moderna. Mesmo quando chego ao Estádio em dias de jogo,
o meu primeiro instinto naquele primeiro momento é esperar que o velho
tenha sido reconstruído num instantinho e ocupe agora o lugar que o novo
ocupou em tempos – mas que era e será sempre seu (do velho).
Todos estes pensamentos são fruto da minha abstracção e, antes
disso, da passagem severa do tempo. As coisas vão mudando, nós vamos
mudando. Só D. Sebastião não aparece. Tento compreender estas coisas e
fico a pensar que crescer é assimilar mudanças, é depararmo-nos com
elas, como quem descobre objectos estranhos, desconhecidos. Amadurecer é
procurar essas mudanças e cuidar delas, ora estancando-as, ora
incentivando-as. Já o envelhecimento é um exercício de perda. É perceber
a irreversibilidade do que desaparece. Por mais que me custe, não
voltarei a ver a minha escola, não voltarei a entrar no velho Estádio da
Luz. E isso custa-me muito.